segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Competência, ambivalência e modernidade em Bauman

Fichamento: 
MODERNIDADE E AMBIVALÊNCIA 
Zygmunt Bauman
meus comentários em verde.
por Márcio L. Rangon

“A ambivalência, possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria, é uma desordem específica da linguagem, uma falha da função normativa (segregadora) que a linguagem deve desempenhar. O principal sintoma de desordem é o agudo desconforto que sentimos quando somos incapazes de ler adequadamente a situação e optar entre ações alternativas.
É por causa da ansiedade que a acompanha e da consequente indecisão que experimentamos a ambivalência como desordem – ou culpamos a língua pela falta de precisão ou a nós mesmos por seu emprego incorreto. E no entanto a ambivalência não é produto da patologia da linguagem ou do discurso. É antes, um aspecto normal da prática linguística. Decorre de uma das principais funções da linguagem: a de nomear e classificar. Seu volume aumenta dependendo da eficiência com que essa função é desempenhada. A ambivalência é, portanto, o alter ego da linguagem e sua companheira permanente – com efeito, sua condição normal.
(...) A mudança produzida no mundo do homem moderno pela ascensão da competência especializada e a irrefreável tecnologização do ambiente humano foi radical e, com toda probabilidade, irreversível.  O mundo humano jamais será novamente como foi antes da ascensão da tecnologia. Se a mudança produz maior felicidade ou miséria mais funda é questão discutível e fadada a continuar a sê-lo. (...) A informação como valor mensurável divorciou-se – e emancipou-se – do  “conteúdo” semântico das declarações. (...) No seu decidido impulso para uma eficiência técnica maior, a competência especializada deve dissolver todas as “totalidades” – pois se concentra, ao contrário, nos seus segmentos acessíveis e controláveis. Essa perpétua tendência da competência especializada adquiriu recentemente uma formidável extensão (e um desvio potencialmente sinistro) com o advento da tecnologia da informação e particularmente das novas totalidades com a interconexão de amplas redes de computadores.  Para o desenvolvimento dessas totalidades, a espantosa especialização entranhada na produção de software, como toda competência técnica, só pode contribuir de maneira parcial. (...) Continuamente, novos fragmentos são acrescentados ao sistema total com pouco (se é que algum) conhecimento do seu impacto no conjunto de programas introduzidos antes. Apesar de (ou por?) ser um produto altamente artificial, feito pelo homem, o sistema computacional desenvolve-se mesmo assim de uma forma espontânea, descontrolada, como que natural, de modo que ninguém é capaz de supervisionar o efeito total. (...) Os maiores sistemas de software crescem de modo descontrolado, cada vez mais incompreensível. Se surge um problema, uma nova peça do programa é escrita num “arranjo” tecnológico imediato, que pode resolver o problema a curto prazo mas cujos efeitos a longo prazo nos programas estabelecidos são desconhecidos e totalmente imprevisíveis. Por isso os maiores sistemas de software evoluem de forma desorganizada, com alguns programadores entendendo fragmentos aqui e acolá, mas ninguém entendendo o sistema como um todo. (...)”
{E essa condição leva à consequência da maximização da flutuação da responsabilidade pelo resultado final da ação.  Todos tem a máxima competência técnica e especializada sobre o produto específico de seu fragmento do conhecimento. No entanto, ninguém tem a competência - e portanto, a responsabilidade objetiva e subjetiva - sobre o produto final do sistema, seus resultados e impactos}.
 “O advento dos sistemas de computador apenas deu novo impulso a uma velha e permanente tendência da especialização tecnicamente orientada – e possibilitou que se desenvolvesse numa escala sem precedentes e até então inconcebível. A competência especializada só é exercida de forma adequada se as consequências sistêmicas do desempenho orientado pelos problemas se perdem de vista ou são deliberadamente postas de lado. (...) Antes da era do computador, eram outros especialistas que lidavam com os efeitos colaterais das práticas especializadas; sempre havia uma pessoa identificável por trás de cada ação. Podia-se discutir interminavelmente o grau efetivo de responsabilidade de cada pessoa e qual das muitas ações interligadas era a causa decisiva de um dado efeito. A discussão podia, porém, ser levada em termos pessoais. Foi essa possibilidade que o advento dos sistemas computacionais simplesmente eliminou. (...)
As instituições socialmente geradas para combater a ambivalência individual tornaram-se os principais mecanismos para manter vivo, reanimar e fortalecer o próprio fenômeno que definiam como a mais sinistra das perdições da vida, o próprio fenômeno cuja eliminação definitiva era declarada como a razão de ser dessas instituições. Elas geram mais ambivalência do que subjugam e desse novo efeito extraem a energia de que precisam para gerar ainda mais ambivalência e a legitimação para continuarem sua ação...
A soma total da ambivalência parece crescer irrefreavelmente. A ambivalência parece medrar dos próprios esforços para destruí-la, tornando cada vez mais distante e nebulosa a perspectiva original de um mundo ordeiro e racionalmente estruturado inscreito num sistema social igualmente ordeiro e racional. A ânsia instruída de escapar à “confusão” do mundo exacerbou a própria condição de que se queria escapar.”
 {A criação de um mundo livre de ambiguidade, fruto do racionalismo, fracassou. No entanto, também não será da ambivalência contemporânea que surgirá uma ordem racional e responsável.}
“ A sociedade moderna parece agora reconciliar-se lentamente à inelutável parcialidade das ordens que é capaz de construir – e assim à ausência de finalidade de qualquer projeto ordenador e à permanência e onipresença da ambivalência. Deve fazer o melhor da condição com a qual não está mais em guerra; para isso, no entanto, teria que renegar sua cruzada contra a ética e os valores “irracionais” em geral.”
         {A flutuação da responsabilidade aliada às externalidades econômicas (que são os efeitos colaterais de uma decisão sistêmica sobre aqueles que não participaram dela, como por exemplo, os impactos ambientais), geram um quadro sombrio onde todos concordam que  tem responsabilidades (culpa) sobre o sistema em geral, mas ninguém sabe realmente o que acontece a partir daquilo que faz, a partir de sua ação (ainda que competente) sobre um fragmento da realidade, embora tem a certeza, dada pela legitimação social de sua competência, de que faz aquele algo melhor do que qualquer um.}