O livro ‘O
capital no século XXI’ do economista Thomas Picketty, professor da Escola de
Economia de Paris, revoluciona ideias sobre desigualdade.
Esse é o teor
da resenha que Paul Krugman - Nobel de Economia em 2008 - publicou no ’The New York Times’ sobre a obra do colega
Picketty. Publicado aqui no Brasil pela ‘Folha de São Paulo’ em 26/04/2014[1],
segue sobre este artigo, algumas gotas de Sociologia.
No texto do
Nobel, vemos que ele concorda em vários pontos com Picketty, principalmente no
que diz respeito à sentença a uma profunda e necessária remodelação do atual sistema
capitalista. Caso contrário a desigualdade se ampliará drasticamente, trazendo
consigo graves consequências ao próprio sistema.
Como a teoria
sociológica demonstra e a história comprova, tal acirramento da desigualdade
social provoca graves tensões que, transformadas em conflito social, provoca mudanças
sociais. Tais mudanças sociais transformariam o sistema econômico social capitalista
de forma imprevisível. É em relação a esse quase determinismo que atualmente
muitos economistas são obrigados a concordar com Picketty e é por esse motivo
que a nova obra sobre o “Capital” está causando tamanho furor no meio
acadêmico.
O mais
curioso na obra de Picketty – e em sua repercussão no meio intelectual sério, ou
seja, naquele composto por economistas não totalmente comprometidos com o mundo
financeiro – é o retorno inexorável à questão central da teoria marxista do
processo de acumulação primitiva do capital e sua lógica relação com o
aprofundamento da desigualdade.
Quer gostemos
ou não, aquilo que diz Picketty sobre o capitalismo em sua obra “Capital no
século XXI”, e que vai ecoando cada vez mais, é o mesmo que Karl Marx concluiu
há mais de século e meio em sua obra “O Capital”
No entanto, a
proposta de Picketty é bem diversa daquela de Marx. Evidentemente o autor não
propõe a luta armada pelos trabalhadores, com a instituição do socialismo a
partir de uma ditadura do proletariado. Picketty, na verdade, propõe uma
“reforma” no capitalismo para que ele se torne sustentável.
Nesse
sentido, não difere de Keynes (John Maynard Keynes, 1883-1946) que surgiu como
uma tábua de salvação do capitalismo agonizante no contexto da Grande Depressão
iniciada com o crack da bolsa em 1929, tirando-o do soro e fornecendo a base
teórica para a implementação das duras - mas necessárias na ocasião - reformas
estruturais do capitalismo, segundo as quais o Estado deveria intervir fortemente
na economia. As reformas keynesianas
regularam as relações de produção, tributaram fortemente a renda e criaram
programas de seguridade social e transferência de renda inéditos, colocando
assim um fim no clássico liberalismo laissez
faire de Adam Smith, principalmente na crença inconteste da autorregulação
do mercado (a “mão invisível” do mercado). A economia seguiu nestes moldes, atravessou
uma guerra mundial, uma guerra fria, criou-se o welfare state e todos estavam bem, até que começou o movimento de
desmonte do Estado de Bem Estar Social com a Dama de Ferro inglesa, dando
início à ressurreição do então finado liberalismo clássico. Como um zumbi, travestido
de uma roupagem moderna e com o epiteto “neoliberalismo”, o capitalismo agora
dá sinais de que caminha para um futuro inglório.
Picketty argumenta
que esse movimento levará a um colapso tão drástico no sistema tal qual aquele
que levou o capitalismo clássico à Depressão – e segundo muitos historiadores,
ao surgimento de lideranças fascistas e à eclosão da Grande Guerra. Picketty propõe
a luta do povo, mas não uma luta armada no estilo clássico, mas uma luta
travada nas urnas, com as armas da própria democracia. Propõe, em outros moldes,
uma revolução dentro da ordem. Fica claro que, segundo o autor, somente o povo,
esclarecido e consciente de seu papel político na sociedade, participando
politicamente dentro das próprias estruturas democráticas, pode promover a
mudança que se faz necessária no capitalismo – qual seja: uma reforma
tributária global - pois a sede do capitalista o cega a tal ponto que o faz caminhar
para o abismo. Para o autor, somente o povo pode colocar no poder os representantes
compromissados com a distribuição de renda através da tributação das heranças e
portanto, com a redução efetiva da desigualdade. Ou seja, segundo o autor, somente
o povo, em busca de uma maior participação na renda do capitalismo, pode salvar
o próprio sistema, uma vez que o capitalista contemporâneo – tal qual o
capitalista liberal clássico – continua não enxergando a inexorabilidade dos
princípios da economia (e da história). Caso contrário, estará em risco a vida
da galinha dos ovos de ouro dos detentores do capital. Paradoxalmente, Picketty
coloca sobre os ombros do povo, do eleitorado, o encargo de salvar o próprio sistema
que, segundo Marx, os explora.
Picketty
propõe ao capitalista para que corte em sua própria carne, na esperança de salvar
o capitalismo. Propõe que seja tributada fortemente a herança e os ganhos de
capital e que seja abrandada a tributação sobre o salário (já que o salário,
evidentemente não é renda). Mas o
próprio Krugmann, em seu artigo, admite que isso é uma utopia. Picketty não é revolucionário; ele propõe
salvar o capitalismo, conservar o sistema, apenas diminuindo seu efeito de
produtor de extrema desigualdade. O autor não é contrário a tudo que lhe é
estrutural - como a exploração do trabalho pelo capital, a maximização relativa
do lucro, a estratificação social por classes e seu corolário: a própria
desigualdade – mas propõe um neocapitalismo, menos desigual, sustentável, que
tenha como propósito fundamental a sua própria conservação.
Portanto, ao
contrário do que se possa imaginar à primeira vista; contrário ao que muitos
estão falando e escrevendo sobre Picketty, contrário até mesmo à intencional analogia
entre o título de sua obra e a obra de Marx (o Capital), Picketty não é marxista,
nem neomarxista, mas um teórico da economia neoliberal, conservadora, desde que
sustentável. Se tivéssemos que rotular sua obra, a etiqueta que colocaríamos em
sua lombada seria algo parecido como: teoria da sustentabilidade econômica ou teoria
pós-neokeynesiana.
Se você se
interessou pelo assunto, leia alguns trechos selecionados da resenha de Krugman
sobre “O Capital” de Picketty. Se quiser lê-la integralmente, segue o link
abaixo. Mas o melhor mesmo é ler o livro de Picketty que, certamente abrirá os
horizontes sobre a realidade do capitalismo atual, principalmente a realidade
do Brasil, o país mais desigual do mundo[2];
um país permeado pela avassaladora corrupção política aliada à fraca
consciência e participação política do cidadão, resultado principalmente de uma
- no mínimo ineficiente, mas certamente mal intencionada - política pública de
educação política[3]
que, aplicada pelo Estado por décadas a fio, transformou nossas crianças em
adultos politicamente analfabetos.
Para Krugman,
a ideia central do livro de Picketty é a de que “retornamos ao séc. XIX em
termos de desigualdade de renda” e, além disso, “estamos no caminho de volta ao
capitalismo patrimonial, no qual os grandes píncaros da economia são ocupados
não por indivíduos talentosos, mas por dinastias familiares.”
Vamos à
leitura de alguns trechos da análise do Nobel de economia:
“Picketty
consegue produzir um sumário da queda e ascensão da desigualdade extrema ao
longo dos últimos 100 anos”.
“Não é apenas
a alusão evidente a Marx que torna o título (do livro) tão surpreendente. Ao
invocar o capital desde o começo, Picketty abandona as discussões mais modernas
sobre a desigualdade e retorna a uma tradição mais antiga.”
“Picketty
demonstra que mesmo hoje é a receita do capital, e não a renda do trabalho, que
predomina no topo da distribuição de renda.”
“Se ele
estiver certo, uma consequência imediata será uma redistribuição da renda, dos
trabalhadores para os detentores de capital.”
“Quando o
ritmo de retorno sobre o capital excede fortemente o ritmo de crescimento
econômico, o passado tende a devorar o futuro: a sociedade tende
inexoravelmente a ser dominada pela riqueza hereditária.”
“Na Belle Époque, os proprietários de
capital podiam esperar retornos de 4% a 5% sobre seus investimentos, com
tributação mínima; enquanto isso o crescimento econômico era de apenas cerca de
1% ao ano. Assim os indivíduos ricos podiam facilmente reinvestir parte
suficiente de sua renda para garantir que sua riqueza, e com ela sua renda,
crescesse mais rápido que a economia, o que reforçava seu domínio econômico, e
ao mesmo tempo gastar o suficiente para levar vidas de grande luxo.”
“ser parte do
1% mais rico dos herdeiros do século XIX conferia a alguém um padrão de vida
cerca de 2,5 vezes superior ao que essa pessoa poderia atingir por meio de
esforço que a conduzisse ao 1% mais bem pago dos trabalhadores.”
“Na França,
demonstra Picketty, a parcela hereditária da riqueza total caiu acentuadamente
na era das guerras e no pós guerra; por volta de 1970, ela era de menos de 50%.
Mas agora retornou aos 70% e continua a crescer.”
“Picketty
aponta que economistas conservadores adoram falar sobre os altos salários de
astros de uma ou outra ordem, como os de cinema ou do esporte, como maneira de
sugerir que as altas rendas são realmente merecidas. Mas esse tipo de pessoa
forma uma fração muito pequena da elite da renda. O que encontramos, em lugar
disso, são principalmente executivos de uma outra ordem – pessoas cujo
desempenho é, de fato, muito difícil de avaliar ou de definir em termos de
valor monetário. “ E ele atribui a disparada nos salários a uma erosão das
normas sociais. Na prática, ele atribui a disparada na renda salarial entre os
mais bem pagos a forças sociais e políticas, e não estritamente econômicas.”
“(Picketty
afirma que) aquilo que deriva em direção à oligarquia pode ser detido e até
revertido, se o organismo político assim decidir. (...) Uma estrutura de
taxação progressiva – especialmente a tributação da riqueza e das heranças –
pode ser uma força poderosa (...). Mas infelizmente a história, que ele mesmo
cobre em seu livro, não oferece motivos para otimismo.”
“Em boa parte
do século XX, uma forte tributação progressiva ajudou a reduzir a concentração
de renda e riqueza e você poderia imaginar que uma alta tributação para as
rendas mais elevadas seja o desfecho político natural quando uma democracia
precisa enfrentar desigualdades extremas. Mas Picketty rejeita essa conclusão:
o triunfo da tributação progressiva durante o século XX foi apenas o efêmero
produto do caos. Se nâo tivessem acontecido as guerras e os tumultos da moderna
guerra dos 30 anos europeia, nenhuma tendência parecida teria surgido.”
“(No exemplo
da) Terceira República francesa (1870-1940) a ideologia da república era
altamente igualitária (...) mas a riqueza era concentrada. E a política pública
quase nada fazia para se opor ao domínio econômico dos rentiers: os impostos sobre as heranças eram ridiculamente baixos.
Por que cidadãos franceses, dotados do sufrágio universal, não votavam em
políticos que assumissem o compromisso de enfrentar a classe dos rentiers ? Bem, então como agora, a
riqueza comprava muita influência – não apenas sobre a política, mas sobre o
discurso público. É difícil fazer com que um homem compreenda alguma coisa
quando seu salário depende de que ele não a compreenda. (Picketty) conclui que
nenhuma hipocrisia é grande demais quando as elites econômicas e financeiras se
veem obrigadas a defender seus interesses.”
“A retórica
econômica conservadora (atualmente) já enfatiza e celebra o capital, de
preferência ao trabalho – os criadores de empregos – não mais os trabalhadores
(são citados).”
“A carga
tributária sobre os norte-americanos de alta renda vem caindo de forma
generalizada desde os anos 70, mas as maiores reduções aconteceram nos impostos
sobre a renda gerada pelo capital – o que inclui uma forte queda nos impostos
das empresas, o que indiretamente beneficia seus acionistas – e nos impostos
sobre heranças. Ás vezes parece que porção substancial de nossa classe política
está trabalhando ativamente para restaurar o capitalismo patrimonial que
Picketty descreve. E se observarmos as fontes de doações políticas, essa
possibilidade parece muito menos absurda do que poderia ser.“
“Picketty
conclui (seu livro) com um chamado às armas – um apelo, especialmente por
impostos sobre a riqueza, se possível em escala mundial, a fim de restringir o
crescente poder da riqueza hereditária. É fácil ser cínico sobre as
perspectivas dessa empreitada. Mas certamente o magistral diagnóstico de
Picketty sobre a situação em que estamos e a situação a que estamos nos
encaminhando torna o êxito consideravelmente mais provável. “
“Picketty
transformou nosso discurso econômico; jamais voltaremos a falar sobre renda e
desigualdade da maneira que fazíamos.“
[2]
Consulte o índice GINI da ONU no qual o Brasil é um dos países mais desiguais
do planeta e, se considerarmos que é uma das principais economias do mundo,
pode-se concluir que o Brasil é efetivamente o país mais desigual da Terra.
Veja em: http://wdi.worldbank.org/table/2.9
[3]
Sobre esse tema, leia o artigo de Humberto Dantas, Educação política e ausência
de participação no Brasil, disponível em: http://www.unimep.br/phpg/editora/revistaspdf/imp44art06.pdf