quinta-feira, 1 de julho de 2021

A bibliotecária, o menino e o seu dedão.

    Contava os 11 anos quando, numa bela tarde, fui obrigado a abandonar a pelada no asfalto com os amigos da rua e fui para casa manquitolando, com a tampa do dedão aberta por aquela bola dividida com o Carlinhos. No caminho de casa havia, ou melhor, há até hoje, uma Biblioteca infanto-juvenil Municipal. Sentei-me na escadinha, bem na porta da biblioteca, a fim de ajeitar o dedão sanguinolento para a árdua jornada de quatro quadras até minha casa. Então surgiu por detrás dos meus ombros uma figura que acabou se tornando alguém muito especial para mim. Era uma senhora baixinha e simpática, que, apoiada em duas muletas, abriu um largo sorriso e me perguntou carinhosamente:

    - Olá menino, o que houve? posso ajudar? Eu me chamo Leila. Qual o seu nome?

    - Oi Sra! Obrigado! Eu me machuquei jogando bola. Me chamo Márcio - respondi.

    - Venha para dentro Márcio e vamos colocar Merthiolate e um curativo aí nesse dedão, tá?

    Curiosamente, pela primeira vez em 12 anos eu não fugi do Merthiolate. Sempre havia preferido o risco de uma infecção gangrenosa ao ardor passageiro daquele antisséptico tenebroso. Também não fugi daquele espaço – cheio de livros, que lembravam a escola… aaargh! - que estava prestes a adentrar. Na verdade, a dor no dedão e a generosidade daquela Sra. me cegaram para este pequeno detalhe: estava entrando em uma biblioteca! 

    Enquanto a D. Leila, a bibliotecária, fazia um curativo no meu dedão, eu comecei a ler um dos livros que estava sobre sua mesa. Era "O Conde de Monte Cristo" de Alexandre Dumas. Ao tempo de finalizar o curativo eu já havia lido umas 10 páginas daquele livrão que parecia uma Bíblia de tão grosso. Eu nunca havia me atrevido a ler um livro daquele tipo. um livro tão grande... e só de letras!

    Percebendo meu interesse naquela leitura, D. Leila me disse que eu poderia levar o livro, mesmo sem ter a carteirinha da Biblioteca, mas com a condição de voltar no dia seguinte para fazê-la e dessa forma me tornar sócio. Sócio! Veja só: eu seria sócio de uma biblioteca!

    Pra resumir o enredo, a partir daquele tarde eu passei quase todas as tardes dos próximos 2 anos lendo os livros daquelas prateleiras, que se tornaram mágicas para mim. E me lembro com muito carinho dos momentos que passei ouvindo as histórias contadas pela D. Leila nos momentos em que ela, percebendo minha avidez em escolher o próximo livro, aliada à minha inorância de leitor iniciante, vinha me contar alguma história, de cabeça: Dorothy, Alice, Capitão Flint, Capitão Aab, Capitão Nemo, Dom Quixote, Sanho Pança, Jean Valjean, Dartagnan, Hercule Poirot, Dr. Jeckil, Dr. Frankenstein. Eram tantas histórias, tantos personagens mágicos… eram doces drops da literatura universal, trailers de aventuras sem fim que atiçavam ainda mais minha vontade de ler.

            D. Leila se esforçava bastante para alcançar certos livros nas prateleiras mais altas, já que era PcD. Ela havia sido uma vítima da poliomielite que, em sua época de infância, fez milhares de brasileirinhos sofrer com esse mal, que poderia ter sido facilmente evitado pela ação eficaz do governo nas áreas de saúde e educação. Eu trepava na cadeira para pegar aqueles livros indicados por ela para depois ficarmos ali, durante algumas horas, cada um lendo o seu livro, no silêncio daquelas tardes distantes naquele templo do saber. 

      Enfim, foi ali também que conheci Orwell, Huxley, Morus, Goethe, Kafka, Hemingway, Tolstoy, Cervantes, Dante... e Marx, Aristóteles, Maquiavel, Rousseau, Montesquieu, Camus, Sartre, Nietzsche, Pessoa, Machado... 

   Enfim, essa é a história de um dedão arrebentado que, tratado com amor e carinho por alguém que fazia muito mais do que sua rotina de cartório, acabou por criar um leitor compulsivo e um professor apaixonado.

Onde quer que esteja, obrigado D. Leila.