segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Quem é esse tal de Picketty que escreveu um novo “Capital” ?







O livro ‘O capital no século XXI’ do economista Thomas Picketty, professor da Escola de Economia de Paris, revoluciona ideias sobre desigualdade.
Esse é o teor da resenha que Paul Krugman - Nobel de Economia em 2008 - publicou no  ’The New York Times’ sobre a obra do colega Picketty. Publicado aqui no Brasil pela ‘Folha de São Paulo’ em 26/04/2014[1], segue sobre este artigo, algumas gotas de Sociologia.  
No texto do Nobel, vemos que ele concorda em vários pontos com Picketty, principalmente no que diz respeito à sentença a uma profunda e necessária remodelação do atual sistema capitalista. Caso contrário a desigualdade se ampliará drasticamente, trazendo consigo graves consequências ao próprio sistema.
Como a teoria sociológica demonstra e a história comprova, tal acirramento da desigualdade social provoca graves tensões que, transformadas em conflito social, provoca mudanças sociais. Tais mudanças sociais transformariam o sistema econômico social capitalista de forma imprevisível. É em relação a esse quase determinismo que atualmente muitos economistas são obrigados a concordar com Picketty e é por esse motivo que a nova obra sobre o “Capital” está causando tamanho furor no meio acadêmico.
O mais curioso na obra de Picketty – e em sua repercussão no meio intelectual sério, ou seja, naquele composto por economistas não totalmente comprometidos com o mundo financeiro – é o retorno inexorável à questão central da teoria marxista do processo de acumulação primitiva do capital e sua lógica relação com o aprofundamento da desigualdade.
Quer gostemos ou não, aquilo que diz Picketty sobre o capitalismo em sua obra “Capital no século XXI”, e que vai ecoando cada vez mais, é o mesmo que Karl Marx concluiu há mais de século e meio em sua obra “O Capital”
No entanto, a proposta de Picketty é bem diversa daquela de Marx. Evidentemente o autor não propõe a luta armada pelos trabalhadores, com a instituição do socialismo a partir de uma ditadura do proletariado. Picketty, na verdade, propõe uma “reforma” no capitalismo para que ele se torne sustentável.
Nesse sentido, não difere de Keynes (John Maynard Keynes, 1883-1946) que surgiu como uma tábua de salvação do capitalismo agonizante no contexto da Grande Depressão iniciada com o crack da bolsa em 1929, tirando-o do soro e fornecendo a base teórica para a implementação das duras - mas necessárias na ocasião - reformas estruturais do capitalismo, segundo as quais o Estado deveria intervir fortemente na economia. As reformas keynesianas regularam as relações de produção, tributaram fortemente a renda e criaram programas de seguridade social e transferência de renda inéditos, colocando assim um fim no clássico liberalismo laissez faire de Adam Smith, principalmente na crença inconteste da autorregulação do mercado (a “mão invisível” do mercado). A economia seguiu nestes moldes, atravessou uma guerra mundial, uma guerra fria, criou-se o welfare state e todos estavam bem, até que começou o movimento de desmonte do Estado de Bem Estar Social com a Dama de Ferro inglesa, dando início à ressurreição do então finado liberalismo clássico. Como um zumbi, travestido de uma roupagem moderna e com o epiteto “neoliberalismo”, o capitalismo agora dá sinais de que caminha para um futuro inglório.
Picketty argumenta que esse movimento levará a um colapso tão drástico no sistema tal qual aquele que levou o capitalismo clássico à Depressão – e segundo muitos historiadores, ao surgimento de lideranças fascistas e à eclosão da Grande Guerra. Picketty propõe a luta do povo, mas não uma luta armada no estilo clássico, mas uma luta travada nas urnas, com as armas da própria democracia. Propõe, em outros moldes, uma revolução dentro da ordem. Fica claro que, segundo o autor, somente o povo, esclarecido e consciente de seu papel político na sociedade, participando politicamente dentro das próprias estruturas democráticas, pode promover a mudança que se faz necessária no capitalismo – qual seja: uma reforma tributária global - pois a sede do capitalista o cega a tal ponto que o faz caminhar para o abismo. Para o autor, somente o povo pode colocar no poder os representantes compromissados com a distribuição de renda através da tributação das heranças e portanto, com a redução efetiva da desigualdade. Ou seja, segundo o autor, somente o povo, em busca de uma maior participação na renda do capitalismo, pode salvar o próprio sistema, uma vez que o capitalista contemporâneo – tal qual o capitalista liberal clássico – continua não enxergando a inexorabilidade dos princípios da economia (e da história). Caso contrário, estará em risco a vida da galinha dos ovos de ouro dos detentores do capital. Paradoxalmente, Picketty coloca sobre os ombros do povo, do eleitorado, o encargo de salvar o próprio sistema que, segundo Marx, os explora.  
Picketty propõe ao capitalista para que corte em sua própria carne, na esperança de salvar o capitalismo. Propõe que seja tributada fortemente a herança e os ganhos de capital e que seja abrandada a tributação sobre o salário (já que o salário, evidentemente  não é renda). Mas o próprio Krugmann, em seu artigo, admite que isso é uma utopia.  Picketty não é revolucionário; ele propõe salvar o capitalismo, conservar o sistema, apenas diminuindo seu efeito de produtor de extrema desigualdade. O autor não é contrário a tudo que lhe é estrutural - como a exploração do trabalho pelo capital, a maximização relativa do lucro, a estratificação social por classes e seu corolário: a própria desigualdade – mas propõe um neocapitalismo, menos desigual, sustentável, que tenha como propósito fundamental a sua própria conservação.
Portanto, ao contrário do que se possa imaginar à primeira vista; contrário ao que muitos estão falando e escrevendo sobre Picketty, contrário até mesmo à intencional analogia entre o título de sua obra e a obra de Marx (o Capital), Picketty não é marxista, nem neomarxista, mas um teórico da economia neoliberal, conservadora, desde que sustentável. Se tivéssemos que rotular sua obra, a etiqueta que colocaríamos em sua lombada seria algo parecido como: teoria da sustentabilidade econômica ou teoria pós-neokeynesiana.
Se você se interessou pelo assunto, leia alguns trechos selecionados da resenha de Krugman sobre “O Capital” de Picketty. Se quiser lê-la integralmente, segue o link abaixo. Mas o melhor mesmo é ler o livro de Picketty que, certamente abrirá os horizontes sobre a realidade do capitalismo atual, principalmente a realidade do Brasil, o país mais desigual do mundo[2]; um país permeado pela avassaladora corrupção política aliada à fraca consciência e participação política do cidadão, resultado principalmente de uma - no mínimo ineficiente, mas certamente mal intencionada - política pública de educação política[3] que, aplicada pelo Estado por décadas a fio, transformou nossas crianças em adultos politicamente analfabetos.        
Para Krugman, a ideia central do livro de Picketty é a de que “retornamos ao séc. XIX em termos de desigualdade de renda” e, além disso, “estamos no caminho de volta ao capitalismo patrimonial, no qual os grandes píncaros da economia são ocupados não por indivíduos talentosos, mas por dinastias familiares.”
Vamos à leitura de alguns trechos da análise do Nobel de economia:
“Picketty consegue produzir um sumário da queda e ascensão da desigualdade extrema ao longo dos últimos 100 anos”.
“Não é apenas a alusão evidente a Marx que torna o título (do livro) tão surpreendente. Ao invocar o capital desde o começo, Picketty abandona as discussões mais modernas sobre a desigualdade e retorna a uma tradição mais antiga.”
“Picketty demonstra que mesmo hoje é a receita do capital, e não a renda do trabalho, que predomina no topo da distribuição de renda.”
“Se ele estiver certo, uma consequência imediata será uma redistribuição da renda, dos trabalhadores para os detentores de capital.”
“Quando o ritmo de retorno sobre o capital excede fortemente o ritmo de crescimento econômico, o passado tende a devorar o futuro: a sociedade tende inexoravelmente a ser dominada pela riqueza hereditária.”
“Na Belle Époque, os proprietários de capital podiam esperar retornos de 4% a 5% sobre seus investimentos, com tributação mínima; enquanto isso o crescimento econômico era de apenas cerca de 1% ao ano. Assim os indivíduos ricos podiam facilmente reinvestir parte suficiente de sua renda para garantir que sua riqueza, e com ela sua renda, crescesse mais rápido que a economia, o que reforçava seu domínio econômico, e ao mesmo tempo gastar o suficiente para levar vidas de grande luxo.”
“ser parte do 1% mais rico dos herdeiros do século XIX conferia a alguém um padrão de vida cerca de 2,5 vezes superior ao que essa pessoa poderia atingir por meio de esforço que a conduzisse ao 1% mais bem pago dos trabalhadores.”
“Na França, demonstra Picketty, a parcela hereditária da riqueza total caiu acentuadamente na era das guerras e no pós guerra; por volta de 1970, ela era de menos de 50%. Mas agora retornou aos 70% e continua a crescer.”
“Picketty aponta que economistas conservadores adoram falar sobre os altos salários de astros de uma ou outra ordem, como os de cinema ou do esporte, como maneira de sugerir que as altas rendas são realmente merecidas. Mas esse tipo de pessoa forma uma fração muito pequena da elite da renda. O que encontramos, em lugar disso, são principalmente executivos de uma outra ordem – pessoas cujo desempenho é, de fato, muito difícil de avaliar ou de definir em termos de valor monetário. “ E ele atribui a disparada nos salários a uma erosão das normas sociais. Na prática, ele atribui a disparada na renda salarial entre os mais bem pagos a forças sociais e políticas, e não estritamente econômicas.”
“(Picketty afirma que) aquilo que deriva em direção à oligarquia pode ser detido e até revertido, se o organismo político assim decidir. (...) Uma estrutura de taxação progressiva – especialmente a tributação da riqueza e das heranças – pode ser uma força poderosa (...). Mas infelizmente a história, que ele mesmo cobre em seu livro, não oferece motivos para otimismo.”
“Em boa parte do século XX, uma forte tributação progressiva ajudou a reduzir a concentração de renda e riqueza e você poderia imaginar que uma alta tributação para as rendas mais elevadas seja o desfecho político natural quando uma democracia precisa enfrentar desigualdades extremas. Mas Picketty rejeita essa conclusão: o triunfo da tributação progressiva durante o século XX foi apenas o efêmero produto do caos. Se nâo tivessem acontecido as guerras e os tumultos da moderna guerra dos 30 anos europeia, nenhuma tendência parecida teria surgido.”
“(No exemplo da) Terceira República francesa (1870-1940) a ideologia da república era altamente igualitária (...) mas a riqueza era concentrada. E a política pública quase nada fazia para se opor ao domínio econômico dos rentiers: os impostos sobre as heranças eram ridiculamente baixos. Por que cidadãos franceses, dotados do sufrágio universal, não votavam em políticos que assumissem o compromisso de enfrentar a classe dos rentiers ? Bem, então como agora, a riqueza comprava muita influência – não apenas sobre a política, mas sobre o discurso público. É difícil fazer com que um homem compreenda alguma coisa quando seu salário depende de que ele não a compreenda. (Picketty) conclui que nenhuma hipocrisia é grande demais quando as elites econômicas e financeiras se veem obrigadas a defender seus interesses.”
“A retórica econômica conservadora (atualmente) já enfatiza e celebra o capital, de preferência ao trabalho – os criadores de empregos – não mais os trabalhadores (são citados).”
“A carga tributária sobre os norte-americanos de alta renda vem caindo de forma generalizada desde os anos 70, mas as maiores reduções aconteceram nos impostos sobre a renda gerada pelo capital – o que inclui uma forte queda nos impostos das empresas, o que indiretamente beneficia seus acionistas – e nos impostos sobre heranças. Ás vezes parece que porção substancial de nossa classe política está trabalhando ativamente para restaurar o capitalismo patrimonial que Picketty descreve. E se observarmos as fontes de doações políticas, essa possibilidade parece muito menos absurda do que poderia ser.“
“Picketty conclui (seu livro) com um chamado às armas – um apelo, especialmente por impostos sobre a riqueza, se possível em escala mundial, a fim de restringir o crescente poder da riqueza hereditária. É fácil ser cínico sobre as perspectivas dessa empreitada. Mas certamente o magistral diagnóstico de Picketty sobre a situação em que estamos e a situação a que estamos nos encaminhando torna o êxito consideravelmente mais provável. “
“Picketty transformou nosso discurso econômico; jamais voltaremos a falar sobre renda e desigualdade da maneira que fazíamos.“



[2] Consulte o índice GINI da ONU no qual o Brasil é um dos países mais desiguais do planeta e, se considerarmos que é uma das principais economias do mundo, pode-se concluir que o Brasil é efetivamente o país mais desigual da Terra. Veja em: http://wdi.worldbank.org/table/2.9  
[3] Sobre esse tema, leia o artigo de Humberto Dantas, Educação política e ausência de participação no Brasil, disponível em: http://www.unimep.br/phpg/editora/revistaspdf/imp44art06.pdf   Hu


Hu

4 comentários:

  1. Prof Márcio L Rangon: não li o livro, mas uma questão me intriga e desconheço quem está repensando o sistema no que diz respeito à inevitável conexão das superestruturas, tão bem reveladas por Marx. A questão é a riqueza, não só acumulada pela exploração do trabalho (que, por sua vez, já não se faz tão necessário... ), mas pelo favorecimento político e pela força política subsequentes. Sabe quem toca, precisamente neste ponto? Neste vínculo que acabou levando os Estados à total dependência das forças econômicas? Abs.

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  2. o “Capital” de Picketty não foi publicado em português ainda, só no original em francês, tradução em inglês e alemão. Mas pra você não há o menor problema certo ?... rsrs... Pela minha leitura, Picketty demonstra – através de uma extensa historiografia embasada por complexas análises estatísticas (típico de economista, pois de outra forma não conseguiria legitimidade acadêmica) - que a teoria da acumulação primitiva do capital (de Marx) é válida. O capital ainda é – e sempre será - acumulado a partir da exploração do trabalho. Ao contrário do que muitos escrevem por aí sobre o fim do trabalho (Alain Touraine) e sobre o início de uma era gloriosa do ócio criativo (Domenico de Masi), tentando impor uma ideologia (neoliberal) que destrói a luta de classes ao tentar nivelar as classes e destruir o sindicalismo por exemplo, eu entendo que a grande contribuição de Picketty é justamente essa: a de desmontar essa ideologia burguesa da possibilidade do fim da desigualdade no capitalismo, do fim da exploração do trabalho pelo capital e por extensão, do perfeito casamento entre a liberdade e a igualdade – o que Bobbio já provou, que são categorias antitéticas, desmistificando o ideal da tríade iluminista que legitimou a sociedade burguesa (e seu sistema, o capitalismo) desde a Revolução Francesa até hoje. É claro que os próprios iluministas/federalistas sabiam disso, pois em nenhum momento defenderam a igualdade econômica, mas apenas a igualdade de direitos, de oportunidades, o sufrágio universal, a universalização do ensino, a cidadania, etc, mas tudo dentro da democracia (e democracia moderna, representativa); exatamente o que Picketty propõe como “solução” para o capitalismo em curso ladeira abaixo. Nesse sentido é que, creio eu, Picketty não pode ser comparado com Marx, mas sim com algo como um pós-neoliberal, de um liberalismo econômico com uma pitada de regulação estatal, mas apenas com uma intenção de conservar o próprio capitalismo, assim como Keynes.
    Quanto à questão do favorecimento político, isso é uma consequência do próprio sistema democrático representativo. A sociedade civil é composta também pela classe dominante e como tal, a domina ideologicamente. Dessa forma, coloca no poder político representantes da elite eleitos pela maioria que é... a classe trabalhadora. Pode parecer paradoxal, mas Gramsci explica muito bem esse fenômeno. De outra forma, como explicar por exemplo as atuais pesquisas eleitorais que apontam a preferência do “povo” por um candidato que carrega nas costas evidentes e gravíssimas mazelas ? Esse sistema é reforçado pelo ethos da sociedade contemporânea, que por sua vez se solidifica cada vez mais com a ideologia dominante, privilegiando o individual sobre o coletivo, o privado sobre o público, o particular sobre o universal. Consequência da fragmentação apontada pelos pós-modernos. (nota: Bauman não usaria o termo “solidifica” mas sim “liquefaz”, o que faz muito mais sentido).
    (...continua...)


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  3. Quanto à dependência dos Estados nacionais às forças econômicas, além de inúmeros teóricos de áreas diversas que demonstram isso (desde Milton Santos até Noam Chomsky), o fato é que essas forças tem nomes, endereços e... donos. São as multinacionais, localizadas em países ricos e seus donos são os membros da pequena elite do capital global. São algumas poucas famílias, que há pelo menos um século ocupam essa posição, como comprova Picketty em seu livro. Essa é a maior “revelação” do livro – como se ninguém soubesse disso – que agora comprova “cientificamente” esse fato que até então era senso comum e fazia parte do imaginário de supostas teorias conspiratórias. Ou seja, faltam pesquisas consistentes, sistematizações e criação de ferramentas teóricas de análise do lado de cá (das ciências humanas) ao passo que sobram teorias (e métodos) do lado de lá (do mundo corporativo e da ciência econômica aplicada, micro e macroeconomia). Veja por exemplo, que artigo interessante
    Ou seja, tudo o que Marx escreveu sobre o capital, o capitalismo e sobre os capitalistas estava correto. E agora legitimado academicamente por um grande economista (certamente um futuro Nobel) tendo uma legião de economistas (Nobel inclusive) fazendo coro. Curioso é que, todos eles – como qualquer economista de sucesso – são ligados de uma forma ou outra ao grande capital. Em suma, o “Capital” de Picketty é uma obra Interessante, curiosa, reveladora e... preocupante.
    Beijocas Domi !

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    1. o "artigo interessante" é esse: SARFATI, Gilberto, Os limites do poder das empresas multinacionais - o caso Cartagena, disponível em: http://www.scielo.br/pdf/asoc/v11n1/08.pdf

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