Capítulo XIII - Dos vadios e
capoeiras
Art. 402. Fazer nas ruas e praças
públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação
Capoeiragem: andar em carreiras, com armas ou instrumentos capazes de produzir
lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou
incerta, ou incutindo temor de algum mal;
Pena - de prisão cellular por dous a
seis mezes.
Paragrapho unico. E' considerado
circumstancia aggravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos
chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro.
Art. 403. No caso de reincidencia,
será applicada ao capoeira, no gráo maximo, a pena do art. 400.
Paragrapho unico. Si for estrangeiro,
será deportado depois de cumprida a pena.
(Art. 400. Si o termo for quebrado, o
que importará reincidencia, o infractor será recolhido, por um a tres annos, a
colonias penaes que se fundarem em ilhas maritimas, ou nas fronteiras do
territorio nacional, podendo para esse fim ser aproveitados os presidios
militares existentes.
Paragrapho unico. Si o infractor for
estrangeiro será deportado.)
Decreto número 847, de 11 de outubro de 1890
Após menos de 1 ano da proclamação da República dos Estados Unidos do
Brasil e pouco mais de 2 anos da edição da Lei Áurea, surge essa lei para “limpar”
as ruas dos vândalos e arruaceiros. Assim como o Candomblé, a capoeira enquanto
expressão cultural de um povo despossuído e intolerado, igualmente não foi
tolerada pela sociedade branca, católica e “civilizada” de um país fundado sob
os princípios republicanos por - e para - uma elite que tinha as mãos manchadas
pelo sangue que escorria dos troncos e senzalas.
Depois de quase meio século de perseguição, em 1937, a capoeira foi
liberada no país por um decreto-lei, no contexto de um projeto populista de
ditadura tupiniquim que precisava do maior apoio popular possível para
instituir um “estado novo”.
Mestre Bimba de Salvador aos poucos foi saindo da clandestinidade e
passou a ensinar sua arte, que logo foi aceita socialmente, valorizada e
incorporada pela elite como uma prática esportiva e/ou uma dança exótica. Elevar
à categoria de esporte e cultura exóticos é o melhor meio de se desqualificar uma intolerada
cultura genuína.
Descriminalizada oficialmente a partir do código penal de 1940 – o
mesmo inclusive que se encontra atualmente em vigor, com algumas alterações – a
capoeira, nascida no seio da senzala e utilizada como luta contra a opressão
dos brancos e como expressão genuína da cultura negra transformou-se de forma
radical; cooptada pela elite, foi embranquecida e transformada em dança, arte e
esporte exótico de “exportação”.

O governo da época – composto pela elite branca, católica, asséptica e
“civilizada” – ao perceber sua derrota frente à cultura popular que resistia ao
extermínio, preferiu mudar sua estratégia, transformando a capoeira em uma
modalidade esportiva para assim, conferindo-lhe certo reconhecimento e,
portanto, certo valor social, circunscrevê-la a um espaço social determinado,
para que pudesse enfim, dessa forma, controlar os efeitos de sua prática.
Aceitar para poder controlar. Valorizar sua forma para poder esvaziar sua
essência.
Passados quase um século desse movimento de aculturação, a capoeira, expurgada
dos componentes políticos de resistência, transgressão e rebeldia que lhe
caracterizavam desde sua origem, foi cooptada pela cultura dominante e
circunscrita, até hoje, a uma simples prática corporal exótica, uma dança típica,
uma “contribuição” dos africanos à cultura nacional, um símbolo da cultura
“brejeira e marota” do povo brasileiro. Só lembrando aqui que o uso desse termo
“contribuição”, tão comum em livros didáticos ao tratar do tema da formação do
povo brasileiro, serve a um propósito ideológico. Segundo o dicionário Aurélio,
“contribuição” é “concorrer para um fim; cooperar”. Não é preciso nenhuma
teoria, além da pura lógica, para admitir que os escravizados não queriam cooperar
com a escravidão.
De forma asséptica, segura, com rigor, eficiência e com o apoio das
massas dos “cidadãos de bem” que julgaram estarem certos, foi-se higienizando
tudo que era “sujo e feio”; foi-se vacinando todos os “doentes” e conspurcados,
já não tão revoltados como outrora; foram-se construindo cidades limpas e “lindas”,
conforme a estética fascista, no caminho para a ditadura que, felizmente, não
chegou a se consolidar por completo, apesar de ter sido bastante sangrenta, a
despeito de os livros de história insistirem em minimizar tais fatos,
relativizando-os pelas conquistas trabalhistas advindas daquela era populista.
E hoje, enquanto turistas estrangeiros se extasiam no Brasil diante de
da capoeiral, vislumbrando-as tal qual uma atração circense, entre um sarapatel
e um bobó de camarão, regados a cachaça (aliás, outra “contribuição” cultural dos
escravizados e que virou também “produto” de exportação) enfim, enquanto a
elite global se empanturra em chiquérrimos restaurantes típicos de padrão internacional,
as famosas academias oferecem o ensino e a prática dessa arte, são
frequentadas, em sua maioria, pela classe média que pode pagar por suas
salgadas mensalidades. Lembrando que classe média é branca.
A capoeira hoje é um esporte que luta para ser reconhecido como
esporte olímpico no mundo dos brancos. Mas, onde ficou a capoeira enquanto luta?
Enquanto uma forte expressão da cultura negra?.
Enquanto a capoeira vai pra boutique de exportação, os pretos pobres
das favelas, jovens herdeiros das senzalas brasileiras, são os mais afetados
por esse apartamento. Muito mais do que qualquer outro brasileiro, são eles os
verdadeiros excluídos da própria cultura.
E quanto à pixação? O pixo tem profundas semelhanças com o movimento
da capoeira, tanto em sua origem social quanto em sua motivação política.
A lei, num primeiro momento, criminaliza, para logo a seguir,
regulamentar essa prática de “sujar” o patrimônio alheio. Segue a mesma lógica tradicional
de que, se não é possível combater e eliminar, é preciso regulamentar para
controlar. Vejamos a evolução desse movimento social a partir da evolução da
transformação dos códigos e das normas legais que regulamentam esta matéria.
Lei 9605 de 12 de Fevereiro de 1998
Art. 65. Pichar, grafitar ou por outro
meio conspurcar edificação ou monumento urbano:
Pena - detenção, de três meses a um
ano, e multa.
Parágrafo único. Se o ato for
realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor artístico,
arqueológico ou histórico, a pena é de seis meses a um ano de detenção, e
multa.
Lei 12408 de 25 de Maio de 2011.
Art. 6o O art. 65 da Lei no 9.605, de 12 de fevereiro
de 1998, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 65. Pichar ou por outro meio conspurcar
edificação ou monumento urbano:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1
(um) ano, e multa.
§ 1o
Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu
valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de 6 (seis) meses a 1 (um)
ano de detenção e multa.
§ 2o
Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de
valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística,
desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou
arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do
órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas
pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do
patrimônio histórico e artístico nacional.”
Como se pode perceber, assim como a
capoeira, a pichação, o grafite, a dança de rua, o funk, o rap, entre outras
manifestações culturais genuínas, são expressões da cultura dos oprimidos que
nasceram da luta do povo contra a opressão, principalmente no espaço urbano, no
qual há muito tempo se concentra a população brasileira, com suas diferenças e
seus conflitos.
Seguindo um movimento legal-institucional semelhante à capoeira e sua
lenta absorção pela cultura dominante (a branca), até bem pouco tempo essa
prática de marcar os muros alheios com tinta era criminalizada, pois feria o princípio
central do direito civil que é a propriedade privada. Em maio de 2011 o grafite
passou a ser tolerado pela legislação – diga-se, pela sociedade – enquanto o
pixo continuou a ser criminalizado.

Todas estas manifestações,
inclusive o pixo, fundamentam-se na crítica social contra a desigualdade, a
discriminação e a repressão policial. Quando a manifestação destas formas
artísticas se dá, em geral, dentro de certas regras sociais, certos espaços e
tempos definidos, de forma planejada e, por vezes, consentida, é aceita
socialmente. Nesse sentido, o grafite é aceito socialmente e, por este motivo, não
se coloca, em geral, fora das regras sociais. O grafiteiro “deixa” de ser o pixador.
Tem certo prazer em dizer que “já não faz mais aquilo”, que agora “faz arte e
não sujeira”. Já o pixo não é arte. O pixo é feio, pois expressa o lado feio da
sociedade. É a expressão legítima e simbólica da luta de classes. Esse é o lado
feio e sujo da sociedade. A sujeira que a elite sempre se esforçou em esconder.
A repressão aos pixadores é, portanto, a expressão concreta da luta de classes na
medida em que provém da parte que detém o poder contra aquela que é oprimida e,
principalmente, que tenta, de alguma forma, ainda que simbólica, resistir à
opressão.
A repressão aos capoeiras foi tanto
mais agressiva quanto maior for o dano causado no patrimônio público ou
particular. A repressão aos pichadores também seguirá essa mesama lógica de
século e meio atrás, pois a luta de classes de hoje é a mesma luta de classes
de século e meio atrás, quando Marx a descreveu, e é a mesma que ele mesmo
afirmou existir desde sempre na história. A história da humanidade é a história
da luta de classes. Muitos já tentaram, mas os fatos demonstram que é impossível
falsear essa hipótese. Portanto, até que se prove o contrário, a luta de
classes como motor da história é uma verdade cientificamente comprovada pelas
ciências sociais.
Portanto, a cruzada contra o pixo, promovida pelo atual prefeito asséptico
e arrumadinho da capital paulista é simplesmente a nova cara, a nova expressão
da velha luta de classes, cujos atores, inclusive, são os mesmos; de um lado os
poucos herdeiros da casa grande quatrocentona (de uma das quais Sua Excelência
descende, inclusive) e de outro, a enorme massa dos despossuídos e bestializados
de sempre.
Estamos vivendo tempos sombrios, mas a luta é grande e o inimigo muito
astuto. Não devemos perder o foco e nos perdermos nos emaranhados de conceitos
e ideias “bacanas” e sedutoras que só servem para nos iludir. Grafite e Pixo não
podem ser diferenciados ideologicamente sob pena de esvaziamento cultural e
perda de sentido histórico e simbólico de UMA manifestação cultural genuína e
repleta de significado social e político. Não podemos deixar que ocorra a mesma
coisa que aconteceu com a capoeira.
Pixo é arte. Grafite é pixo. A arte é dita pelo povo brasileiro, que é
preto, pobre, sofrido e genial. A arte não pode ser ditada por um burocrata de
gabinete, filhote da burguesia e da ditadura branca.
Diga Não! Diga não à essa perversa diferenciação ideológica que querem
impor. Dividir para poder dominar. Criminalizar o Pixo e aceitar o grafite é uma
estratégia perversa. A divisão de uma classe social é a principal arma da casa
grande para desmobilizar a luta. Ao “elevar” uma parcela de uma classe a uma
categoria “superior”, a elite golpeia ferozmente o movimento. Grafiteiros: não
caiam nessa armadilha! Não se deixem seduzir pelo canto da sereia! Mantenham-se
fiéis ao movimento! Vocês não serão melhores nem mais artistas que os pixadores!
Vocês são os próprios pixadores!. Com essa estratégia a elite visa matar dois
coelhos com uma só cajadada: controlar os “artistas” grafiteiros e prender os “criminosos”
pixadores. Como a muito tempo não se vê nesse país, a elite treme com vocês! Vocês
metem medo na elite! Vocês são os jovens que ocuparam as ruas em 2013! E não
foi só pelos 20 centavos! Vocês são os jovens que ocuparam as escolas em 2015!
Vocês são a única esperança desse país! Não se deixem enganar nem por este e nem
por outra tentativa sórdida de desmobilização que vem do andar de cima!
Pixo é arte! Só existe pixo!
Não se deixe enganar! Grafite não existe!
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